Afrodite vai à Torre de Babel: o que a Moda e a Beleza têm a dizer na COP27 Conferência do Clima da ONU
Durante a mesa-redonda “Moda Sustentável feita no Brasil” na COP27, seis empresas compartilharam suas perspectivas sobre sustentabilidade. De um único projeto de joias na Amazônia para neutralizar a pegada de carbono de toda a cadeia de valor de produtos de beleza, suas diferentes estratégias servem de inspiração para o nosso entendimento sobre o papel das indústrias de moda e beleza ao abordar os desafios do aquecimento global.
A Conferência das Partes (COP) da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima pode ser comparada à Torre de Babel: construída para alcançar o céu, milhares de pessoas tiveram sua fala confusa por Deus e não conseguiam mais se entender, mas ainda assim continuaram a falar. Da mesma forma, a COP representa o evento mais ambicioso do mundo para lidar com os desafios impostos pelas mudanças climáticas. Mais recentemente, a COP27 trouxe 35.000 pessoas para Sharm El-Sheikh no Egito. O setor privado também esteve bem representado, compartilhando diferentes abordagens para alcançar a sustentabilidade e mostrando responsabilidade corporativa. Muitas corporações apresentaram slides relacionando suas atividades a alguns dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável e/ou mostrando ícones próprios derivados de uma ideia de sustentabilidade dividida em aspectos inter-relacionados[1]. Por um lado, tal comunicação posiciona o discurso no nível da ONU; por outro lado, omite práticas insustentáveis que representam pouco mais que greenwashing. Em outras palavras, todas essas diferentes abordagens e vocabulários em torno da sustentabilidade do setor privado tornam difícil separar o joio do trigo.
Diante desse contexto, trouxemos a metafórica Afrodite, a deusa do amor, da luxúria e da beleza, até a Torre de Babel, realizando uma mesa redonda sobre Moda e Beleza na COP27, com o objetivo de entender como as empresas abordam a sustentabilidade. A indústria da moda é responsável por 10% das emissões globais de carbono, mais do que todos os voos internacionais e remessas marítimas juntos. A mesa redonda “Moda sustentável feita no Brasil”, realizada no dia 8 de novembro de 2022, foi um dos três principais eventos[2] discutindo Moda na COP27, e a única que incluiu o setor de beleza. Em parceria com a ONG Responding to Climate Change, a agência Ethical Fashion Brazil, e o grupo de pesquisa Civic Innovation do International Institute of Social Studies[3], a mesa redonda reuniu as empresas de moda Grupo SOMA, Lojas Renner, Malwee, assim como as empresas de beleza Laces and Hair e Simple Organic. Okeanos, fornecedora de plástico feito de pedras brasileiras com sede em Miami e que produz cabides sustentáveis para a indústria da moda, também participou.
O Grupo SOMA tem um valor de mercado próximo de 10 bilhões de Reais. Embora tenha em seu portfólio várias marcas que não são conhecidas por serem sustentáveis[4], foi mostrado um projeto de uma de suas marcas, Farm Rio, sobre joias produzidas por mulheres indígenas Yawanawá[5] na floresta amazônica. Contando com a primeira cacique Yawanawá em uma geração e a Chefe de Sustentabilidade do Grupo SOMA dividindo o palco, observamos discursos ecofeministas misturados com narrativas de espiritualidade e liderança. Quando a cacique Yawanawá disse “trabalhamos com o Espírito da Floresta, a Força Espiritual”, ela se referia ao xamanismo, e ao seu trabalho pautado pelos efeitos da ayahuasca, uma droga/remédio psicodélico legal no Brasil, e que faz parte da cosmovisão e práxis dos Yawanawás. Embora não tenha sido mencionado, todas as miçangas usadas nas joias não vem de sementes, mas são importdas da República Tcheca , onde a produção de miçandas de vidro[6] é concentrada na pequena cidade de Jablonec. Soubemos que o projeto empoderou 160 artesãs, que protegem 200ha de terras indígenas na Amazônia, e plantou 2.000 árvores. Algumas dessas mulheres se tornaram “líderes”/xamãs/caciques e agora estão se conectando mais com a floresta e seus espíritos, tendo a joalheria como um vetor para catalisar essa conexão. Lançado em 2017, o projeto teve quatro coleções em 2021 e já atingiu sua capacidade máxima, deixando em aberto a questão de como crescer ainda mais.
Assim como o Grupo SOMA, Lojas Renner é uma das 150 empresas de moda do mundo que assinaram o Fashion Industry Charter for Climate Action, uma iniciativa[7] do UFCCC para empresas de moda se tornarem net zero até 2030. Lojas Renner é um verejista semelhante à C&A, sendo também o principal patrocinador do Brasil Eco Fashion Week. A Renner também investiu na startup Repassa focada no mercado de resale, brechó boutique online. Ambas são contribuições valiosas para o sistema de inovação da moda sustentável no Brasil. A apresentação da Renner na mesa redonda foi focada em seus próprios objetivos para se tornar net zero. A Lojas Renner considera a sustentabilidade de importância estratégica. Entre suas conquistas, a empresa tornou-se líder mundial no setor de varejo no Índice de Sustentabilidade Dow Jones, e aumentou a diversidade de suas equipes, inclusive trabalhando com ex-detentos de APACs[8] para reintegrá-los à sociedade. Além disso, a Lojas Renner quer incorporar a circularidade, começando pelos processos de design e planejamento para reduzir o desperdício e reciclar seus produtos. No entanto, um dos gargalos para a circularidade no Brasil é o fato de a logística reversa ser vista como um problema a ser resolvido, não como uma oportunidade rentável de negócios.
A Malwee é uma das maiores empresas de moda do Brasil, que integra a maior parte dos processos produtivos da cadeia têxtil e moda (TC). Tendo seis marcas[9], a Malwee produz 45 milhões de peças por ano. Sua fábrica é referência em sustentabilidade no que diz respeito à engenharia têxtil (por exemplo, transformando roupas usadas em novas fibras), e a empresa é neutra em carbono (devido aos 1,5 milhão de metros quadrados de natureza preservada de seu próprio Parque Malwee, o qual é aberto ao público). No entanto, nenhuma de suas marcas se posiciona como Ecobrands, mas sim como Marcas Nativas Digitais. Durante o evento, a empresa lançou uma plataforma para promover a moda circular para a geração mais jovem. Como parte de suas estratégias integradas de marketing e comunicação, o diretor criativo da Malwee fez parte da plateia e compartilhou diariamente posts na revista Harper’s Bazaar Brasil.
Mencionadas na Forbes Brasil, junto ao ISS, as empresas de beleza Laces and Hair e Simple Organic são dois cases de empreendedorismo sustentável com foco em inovação. A Laces and Hair é uma empresa familiar de terceira geração, com salões de beleza nas grandes cidades do Brasil, com mais de 50.000 atendimentos/ano. Com o objetivo de “reparar cabelos danificados com a natureza”, eles usaram palavras da biologia para descrever seu negócio. Por exemplo, ao explicar que seu ecossistema de beleza inclui a cadeia de suprimentos, o consumidor e os cabeleireiros integrados no bioma. Em 2021, a Laces and Hair adquiriu a empresa Carbon Limited, consultoria especializada no mercado voluntário de carbono, e responsável pela aquisição de carbono via reflorestamento. Isso permitiu à empresa neutralizar não apenas sua própria pegada, mas também a de seus fornecedores e parceiros. Além disso, os salões de beleza integram verdadeiramente a natureza em sua arquitetura e design, e a empresa produz e vende produtos capilares veganos e orgânicos, além de apoiar algumas comunidades sociais.
A Simple Organic era uma startup de beleza que participava de feiras como Brasil Eco Fashion Week e Milan Fashion Week, até ser comprada pela Hypera Pharma para que pudessem aumentar sua produção de cosméticos e maquiagem orgânicos. Eles nunca quiseram ser uma marca de nicho, mas crescer substancialmente para aumentar seu impacto no consumidor. Assim como a Malwee, a empresa está focada no nativos digitais e nos millenials. A comunicação do produto expressa valores de diversidade e neutralidade de gênero. Entre as inovações, eles desenvolveram sacolas plásticas degradáveis (dissolúveis), que se tornarão comida de peixe se forem parar no oceano, e estão lançando um protetor solar amigo dos recifes. Além disso, os clientes podem devolver suas embalagens para reciclagem e ganhar 10% de desconto na próxima compra.
Em nossa própria apresentação, falamos sobre nosso projeto de pesquisa sobre “Estratégias criativas para comunicar resultados de pesquisas sobre moda sustentável”, que visa investigar o efeito de transmedia na indústria da moda, e apresentamos uma campanha de mídia social que era parte integrante da mesa redonda. Essa abordagem é inovadora porque comunica os resultados da pesquisa de maneira semelhante à que as empresas fazem com seus produtos. Paralelamente, mais de mil influenciadores de moda, empresários e jornalistas receberam um e-mail convidando-os a participar da mesa redonda online e promover a campanha. Alguns fizeram ambas as coisas.
Design gráfico para mídias sociais desenvolvido por Katy Carvalho e Ben Viglioti para Luciana Dos Santos Duarte
Para a parte de perguntas e respostas da mesa redonda, usamos perguntas baseadas em possíveis soluções para a moda apresentadas em um documento elaborado por alunos de ensino médio de diversos países que organizaram a “mini ONU”, Model United Nations – MUNISH 2022. Por que? Porque os alunos do ensino médio representam a geração que é (e será) mais afetada pelas mudanças climáticas e que deveria ter o direito de dialogar com os grandes atores.
Duas soluções sugeridas pelos alunos foram taxar o fast fashion e identificar produtos que não são sustentáveis (como a letra T para Transgênicos em embalagens de alimentos no Brasil). Os participantes da mesa redonda acreditam que antes de taxar as empresas que não são sustentáveis, o governo deveria fazer mais pelas empresas que são sustentáveis. “Precisamos de mais regulamentação, fiscalização, controle e certificação”, disse a representante da Malwee, além de “investir não só na compra de carbono (créditos), mas na redução do impacto ambiental dos processos produtivos”. A representante da Lojas Renner disse que “quase toda a regulamentação vem da Europa e América do Norte”, e reconheceu o esforço da Associação Brasileira do Varejo Têxtil (ABVTEX) regulamentar a cadeia varejista de moda no Brasil. Ela também disse que sua empresa está tentando cumprir os novos requisitos antes que eles se tornem um regulamento. Quando questionado sobre a Política Nacional dos Resíduos Sólidos – criada pelo governo brasileiro em 2010 e que criminaliza o descarte de resíduos têxteis como lixo comum, embora sem fiscalização adequada – os participantes argumentaram que as empresas deveriam ser responsáveis por seu impacto ambiental. Por exemplo, eles podem optar por não trabalhar com fornecedores que não sejam certificados de acordo com os regulamentos.
A maioria das empresas concorda que precisa educar seus consumidores sobre o que é sustentável. Neste sentido, estão a vender não só produtos, mas também a criar um serviço de sensibilização para a sustentabilidade. A mídia social é um vetor de educação, mas ao mesmo tempo é uma ferramenta para criar desejo e, portanto, gerar receita. Nesse sentido, crescimento e decrescimento estão relacionados à aceitação da marca pelo consumidor, ao business as usual, e não a um movimento ambiental. Questionados sobre o paradigma de que 90% dos consumidores compram um produto porque está na moda e apenas 10% porque é sustentável, eles concordaram que a sustentabilidade deve se tornar uma motivação intrínseca. Precisam mudar a forma de produzir, mas não o produto, ou pelo menos não a estética do produto, para dialogar com a ética da sustentabilidade.
“Não precisamos fazer moda sustentável, mas a moda sustentável”, concluiu a representante da Malwee.
“Marketing de guerrilha”, com um banner customizado portátil, foi também uma estratégia para promover a pesquisa e aumentar a consciência sobre moda sustentável durante a COP27. Um código QR podia ser escaneado, levando o leitor para a página com mais informações. Fonte da imagem: Sylvia Bergh
Conclusão
Embora as apresentações e discussões durante a mesa redonda tenham mostrado diferentes abordagens sobre sustentabilidade, os representantes das empresas convergiram em alguns temas como assumir a responsabilidade corporativa pelo clima, e não esperar isso do governo ou dos consumidores. Desde um único projeto de joalheria na Amazônia até a neutralização da pegada de carbono de toda a cadeia de valor, suas diferentes estratégias servem de inspiração para entendermos o papel das indústrias de moda e beleza no enfrentamento dos desafios das mudanças climáticas.
A moda é uma das indústrias mais poluentes do mundo, e o Brasil é um dos principais produtores de fibras, têxteis, couro e vestuário do mundo. Enquanto o país ainda tenta regular o setor de moda para práticas sustentáveis, suas maiores corporações se adaptam às exigências internacionais e ao que acreditam ser sustentável. No final, o representante da Laces and Hair citou o exemplo do estande da Ucrânia na COP27 que o impressionou por “mesmo estando em guerra, estão a pensar na sustentabilidade”, e que daí não há desculpa para não fazermos o mesmo.
Em meio a essas diversas e fragmentadas perspectivas sobre sustentabilidade, nossa metafórica Afrodite apareceu na Torre de Babel e perguntou a todos: “Suas roupas são sustentáveis?” As empresas disseram que sim e explicaram como – mas você faria isso por você e pelo mundo? Por favor, comece lendo as etiquetas das suas roupas: qual é o tipo de fibra? O algodão convencional e o poliéster representam 80% de todas as fibras utilizadas no mundo, que consomem muita água e produtos químicos, e devemos substituí-los por algodão orgânico, algodão reciclado e outras fibras como cânhamo, linho, bambu, algas marinhas, poliéster reciclado, etc. E onde suas roupas são produzidas? Se for no sul da Ásia, há uma grande chance de terem sido feitos nas piores condições de trabalho do mundo. Por fim, pesquise mais sobre cada marca antes de comprar seus produtos. Não podemos esperar pela próxima COP para fazer essa pesquisa.
Referências
[1] Considerado o primeiro desfile de moda sustentável do mundo, lançado em Paris, em 2004, o Ethical Fashion Show dividiu a ideia de “ética da sustentabilidade” em seis categorias: (1) Materiais orgânicos; (2) Moda que investe em projetos sociais; (3) Reciclagem; (4) Moda que promove o saber-fazer; (5) Materiais naturais; (6) Moda justa. As categorias foram representadas como ícones facilmente identificáveis na feira. A interdependência das categorias permitiu que as empresas utilizassem materiais ecologicamente corretos, mas não promovessem o comércio justo, por exemplo. Desde então, a abordagem fragmentada da sustentabilidade na indústria da moda tornou-se aceitável (o que não significa desejável).
[2] O evento principal para debater a moda, também na Blue Zone, foi Fashion Industry on the Race to Zero: Building a better future for the industry, people and planet, em 11 de Novembro. Além desse, na Green Zone, aberta ao público geral, a UNEPe o Global Fashion Agenda organizaram o evento paralelo Circular Systems for a Net Positive Fashion Industry, em 12 de Novembro de 2022.
[3] O evento, juntamente com uma campanha nas mídias sociais, faz parte das atividades do nosso projeto de pesquisa “Moda Sustentável Transmídia feita no Brasil – Documentando a Mesa Redonda da COP27 Conferência sobre Mudanças Climáticas da ONU e explorando estratégias criativas para comunicar pesquisas científicas”, patrocinado pelo grupo de pesquisa Civic Innovation no Instituto Internacional de Estudos Sociais (Universidade Erasmus de Rotterdam).
[4] O Grupo SOMA inclui as seguintes marcas: Farm, Farm Global, Fabula, Animale, Cris Barros, Foxton, NV, Maria Filó, Off Premium, Hering, Hering Kids, Hering Intimates, e Dzarm.
[5] Segundo eles, até 2005 os Yawanawá eram uma comunidade patriarcal. A atual geração de caciques do Acre está associada à produção de joias para a Fazenda Rio, localizada no Rio de Janeiro.
[6] Como pesquisador em trabalho de campo com comunidades indígenas no Brasil, é comum ouvir de antropólogos experientes que oferecer miçangas tchecas, além de anzóis, facilitará sua entrada e aceitação.
[7] Não está claro se a iniciativa promove um diálogo genuíno entre as empresas e se passa por avaliações externas (independentes).
[8] Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (APAC) é um modelo de humanização do Sistema Penitenciário Brasileiro. Em suma, o detido trabalha na prisão, por ex. fazendo artesanato, e frequenta alguns cursos. O tempo dedicado ao trabalho e ao estudo é descontado da pena.
[9] Malwee, Enfim, Malwee Kids, Carinhoso, basico.com, basicamente.
Sobre as autoras
Luciana dos Santos Duarte é doutoranda em dupla titulação em Engenharia de Produção (Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil) e Estudos de Desenvolvimento (International Institute of Social Studies, ISS/EUR). Possui mestrado em Engenharia de Produção e bacharelado em Design de Produto. Ela também é professora em Industrial Design Engineering na Universidade de Ciências Aplicadas de Haia (THUAS).
Sylvia I. Bergh, Professor Associado em Gestão de Desenvolvimento e Governança, Instituto Internacional de Estudos Sociais (ISS), Erasmus University Rotterdam (EUR), e pesquisador sênior, Centro de Especialização em Governança Global, The Hague University of Applied Sciences (THUAS).