Valentina Sampaio: controvérsias na representatividade trans
A modelo foi contratada pela grife de lingerie Victoria’s Secret
Sagitariana, nascida em 10 de dezembro de 1996, em uma vila de pescadores no Ceará, Valentina chegou ao topo do mundo da moda. Depois de já ter trilhado uma brilhante carreira na moda, que inclui ter sido capa da revista Vogue França e da Vogue Brasil, a modelo foi contratada pela Victoria’s Secret. É a primeira modelo trans a se tornar “angel” da famosa marca de lingerie.
A contratação, no entanto, é controversa. Por um lado, temos a Victoria’s Secret que vende não só lingerie, mas a comunicação de um padrão de beleza muito seleto: mulheres altas, magras e geralmente claras. E pra quem está chegando de pára-quedas de Marte nas questões sociológicas, de desigualde social, etc., esses atributos físicos também estão relacionados a uma elite econômica, que geralmente é branca e pode gastar milhares de dólares com lingerie, por exemplo. – Ou nós vemos negros, gordinhos, moradores de rua, anões, como os donos do poder, o exemplo de beleza? Não. Pois é. A sociedade está bem estratificada, inclusive na imagem que ela vende dela mesma.
O fato é que a Victoria’s Secret vem passando por uma crise sutil. Seu faturamento milionário reduziu em 2018 siginificativamente, e a previsão é de não ter o famoso desfile na TV em 2019. Alguns diretores alegam que o formato perdeu o sentido. Isso endossa o fato da relevância das mídias sociais, influenciadores digitais, e a publicidade na internet de forma geral.
A força do digital se faz sentir também pela onda do politicamente correto, e por levantar bandeiras que a TV não levantava (ou o fazia bem mal), como a da representatividade. O que isso quer dizer? Bem, grupos na internet sempre questionaram que a Victoria’s Secret vendia uma imagem muito estratificada de corpos difíceis de se alcançar. E a empresa estava OK com isso. Um dos diretores da marca chegou a assumir mesmo que o desfile é uma fantasia, e isso justifica o fato de serem só modelos altas, magras e geralmente claras. Ou seja, não é pra aparecer deficientes, obesas, anãs, etc. Embora sim, já teve modelos bissexuais e lésbicas (Cara Delevingne, por exemplo). Há uma dosagem do que venha a ser representatividade no grupo de angels da VS.
Não obstante, o outro agravante recente da Victoria’s Secret é o fato de mais de 100 modelos terem assinado um abaixo-assinado sobre a má conduta de profissionais (fotógrafos, etc), por tratarem-nas como objetos sexuais, por cometerem abusos em níveis diversos, etc.
Então, no momento, duas notícias bombásticas são disparadas pelas mídias com relação a grife:
- a má conduta sexual da equipe envolta das modelos da VS;
- a contratação da primeira modelo transgênero pela VS.
O fato das duas notícias serem concomitantes dá um aspecto de defesa estratégica da marca Victoria’s Secret. A contratação da primeira modelo trans tenta se inserir como discurso positivo em meio a duas negatividades envolvendo a VS:
- obviamente, a má conduta sexual e desrespeitosa da equipe contratada para trabalhar com as angels;
- a marca deixar de se posicionar como excludente, como direcionada para corpos altos, magros e claros. Isto é, a marcar deliberadamente escolher uma representante de uma minoria (trans) para integrar sua equipe de angels.
E a Valentina, o que tem com isso? Houve um jornal de moda importante dizendo que a nossa Valentina é, no final das contas, mais do mesmo, mais uma modelo alta, magra e clara. Então, sobre que representatividade exatamente estamos falando? Pois em termos de consumo de imagem, a imagem da Valentina se mistura a das demais modelos da grife, que é o argumento colocado pela linha editorial do Business of Fashion. – E neste ponto, o Ethical Fashion Brazil discorda.
Nós não estamos mais no paradigma do consumo de imagens meramente. Então, sim, nos importa que haja uma modelo trans em um time de héteros e poucas lésbicas e bi, ainda que essa modelo trans tenha aparência física semelhante às das outras modelos. Pois sim, nos importa que o paradigma que estamos vivendo é o do consumo de imagens com significado, imagens que expressem uma sociedade heterogênea e unida. A sociedade está ansiando por coesão social, buscando questionar o simbólico das imagens. Sim, é importante que a Valentina Sampaio represente o público trans em uma das maiores vitrines e máquinas de produzir padrão de beleza. E sim, isso não vai ajudar a Victoria’s Secret a se manter relevante no mercado – pois a empresa está apenas sendo reativa. Ela já é velha na sua ideologia, e precisaria trocar a abordagem de marketing para:
- se tornar mais inovadora com as vozes digitais,
- e se tornar mais solidária com as mulheres, ao entender a sociedade mais igualitária com relação a coexistência de padrões diferentes de beleza.
Todo mundo entendeu: as vendas continuarão caindo, pois a questão é estrutural e não contingencial. E a Valentina é de fato um anjo que teve sua beleza contratada, em um momento estratégico, para salvar a máquina-mor do padrão de beleza. Ela deveria ter sido contratada antes, não como reação da empresa no mercado, mas como vocação de valores da empresa.