Trabalho infantil no calçado em Franca
Com a tercerização desde 1980, as crianças “ajudam” no tressê e na costura de calçados
A cidade de Franca-SP, conhecida como Capital Nacional do Calçado, é considerada a 5ª cidade mais segura do Brasil, bem como a 2ª a ter todos os esgotos 100% tratados.
Se por um lado a cidade é exemplo de segurança, sustentabilidade e tecnologia para a moda, por outro tem um histórico velado de trabalho infantil nas indústrias calçadistas. No livro “Trabalho e trabalhadores do calçado”, a autora Vera Lúcia Navarro relata toda a origem da indústria calçadista de Franca, e faz algumas considerações sobre o trabalho de crianças como “ajudantes” de suas mães costureiras/pespontadeiras a cumprirem metas de trabalho. Com a produção cada vez mais terceirizada desde a década de 1980, e com o agravante das consequências do Golpe dado pelo ex-presidente Temer, o retrocesso dos direitos trabalhistas se faz sentir no trabalho deslocado da fábrica para a casa. E quem encontramos em casa para “ajudar” os pais que já não são mais assalariados? Crianças. E o que é mais surreal disso tudo? O atual presidente ser a favor do trabalho infantil.
Talvez devessemos nos imaginar crianças novamente, com nosso imaginário e nossas brincadeiras arrancadas da mente, para dar lugar a pensamentos sobre costurar 20 cabedais por dia, cortar 50 cadarços por dia, e não receber um centavo por “ajudar” os pais em um país em decadência econômica, trabalhista e moral. – Luciana Duarte
Sem mais a dizer, vamos ler sobre como ocorreu o trabalho infantil no calçado, na cidade de Franca-SP, de acordo com a autora Vera Lúcia Navarro.
“Na costura manual feita em domicílio, a exemplo da elaboração de tressê, predomina o trabalho de mulheres e crianças. É principalmente, a partir dos anos 1980, quando aumenta a demanda por este tipo de trabalho e quando praticamente toda a costura manual deixa de ser realizada no interior das fábricas que se registra um grande aumento da participação do trabalho de crianças na produção de calçados em Franca. Se o trabalho infantil integrou a história da produção de calçados em Franca quando, em sua origem, as crianças eram empregadas nas oficinas de calçados como aprendizes, o crescimento do trabalho em domicílio da costura manual e do tressê reintroduziu e ampliou o consumo dessa força de trabalho através do trabalho em domicílio, que assume características familiares, ou seja, passa a envolver todos os membros da família. Na costura manual, o trabalho das crianças envolve as tarefas de medir e cortar as linhas que serão necessárias para a costura, molhar os cabedais, arrematar e cortar os fios, fazer a “mosquinhas” (ponto em cruz, feito no alto da pala) ou realizar os pontos considerados mais fáceis, como o ponto “xis”, e é considerado como “ajuda”. As crianças “ajudam” as mães a cumprirem suas cotas diárias, não sendo remuneradas separadamente por seu trabalho.
É possível pois afirmar que o aumento da exploração do trabalho infantil pelas indústrias de calçados de Franca radica no crescimento do trabalho realizado nas bancas e do trabalho realizado em domicílio, a partir dos anos 1980. O trabalho de crianças na produção de calçados em Franca, bem como em outras regiões produtoras de calçados do país, vem sendo amplamente denunciado e combatido desde o início da atual década [1990], período que coincide com o início da terceirização [1993], que normalmente significa produção doméstica, praticamente fora do alcance da fiscalização trabalhista, que tem como consequência a frequente burla da legislação e o desrespeito às poucas conquistas trabalhistas já obtidas (NAVARRO, 2006).”
Referências
NAVARRO, Vera Lúcia. Trabalho e trabalhadores do calçado: a indústria calçadista de Franca(SP): das origens artesanais à reestruturação produtiva. São Paulo, Expressão Popular, 2006.