Melissa: crítica ao seu posicionamento de sustentabilidade
Flertando com um consumidor preocupado com o meio ambiente, a Melissa não passa de um “crush pé de chinelo”
Gostaria de começar, com ironia, parabenizando o departamento de marketing da Melissa, pelo trabalho feito ao longo de anos, comunicando que seus calçados são “recicláveis”. Muita coisa nesse mundo industrial é “reciclável”. O que não quer dizer que seja reciclada, dado que para algo ser reciclado precisa existir a logística reversa daquela coisa, bem como existir o comportamento de devolução por parte do usuário/cliente. Aliás, tem um livro muito bom que recomendo, “Logística Reversa”, do Paulo Roberto Leite, que vai explicar bem a dificuldade de criar um sistema reverso no Brasil em certos segmentos industriais. Um dos paradoxos do sistema reverso é usar a mão-de-obra de pessoas em péssimas condições de trabalho. Por exemplo, o Brasil é o país que mais recicla alumínio no mundo (a última estatística que lembro de ter lido era 98% de todo nosso alumínio é reciclado), mas para tanto essa cadeia de reciclagem está estruturada nos catadores.
DOWNLOAD Artigo “Logística Reversa” – nova área da logística empresarial – Paulo Roberto Leite – PDF
DOWNLOAD Palestra “Logística Reversa” – Paulo Roberto Leite – PDF
DUARTE, Luciana dos Santos; CÂMARA, Tânia. Logística reversa e competitividade para os resíduos têxteis no polo da moda de Belo Horizonte. Anais do Colóquio Internacional de Design, Belo Horizonte, Minas Gerais, 2015, pp. 372 – 386.
Se não estou enganada, a Melissa usa uma parte de matéria-prima reciclada como componente em seus calçados. Então, em parte, pode ser mesmo que eles já sejam reciclados. Em parte, não completamente. Pois do ponto de vista da engenharia, se fosse completamente reciclado, teria uma piora significativa das propriedades mecânicas do material. Eu me lembro há muitos anos atrás de estudar aquele livro clássico do Callister, “Ciência e Engenharia dos Materiais”, e lá ele vai explicar como que é isso (ver capítulo 8 para Falhas, e capítulos 15 e 16 para Polímeros).
DOWNLOAD Livro “Ciência e Engenharia dos Materiais” – William D. Callister Jr. – PDF
Ainda assim, não quer dizer que o calçado da Melissa, tendo ou não uma parte sua constituída de material reciclado seja um calçado de boa qualidade. Eu lembro que eu tinha menos de cinco anos de idade, filha de um pai modelista e estilista de calçado (que até chegou a ter umas fabriquinhas de calçado e de reciclagem de plástico), e eu queria usar um calçado de plástico, uma botinha da Xuxa, que todas as coleguinhas usavam. E meu pai não deixava, dizia que era uma porcaria, que dava chulé, que acabava rápido. Então eu usava uma papete de couro, igual a dos meninos. E assim foi até os 18 anos (isso era 2004), quando eu tinha um dinheirinho sobrando e resolvi me dar de presente uma Melissa, modelo aranha clássica, cor rosa chiclete, custou barato. Pensei “ah, tantos anos depois, esse sapato deve ser bom”. O calçado não chegou a durar quatro meses. Eu piso um pouco pra fora, ou seja, há um desgaste natural de parte do solado, que no caso do calçado da Melissa, se acentuou (cerca de uns 30 a 40 graus) mais que o normal nos meus outros calçados. Além de não durar, o calçado ainda dava chulé. Meu velho tinha razão, tenho que reconhecer essa, saravá, luz e gratidão aí no outro plano astral.
Pois bem, voltando à questão da logística reversa, o que algumas empresas (ex. o grande varejista de fast-fashion H&M) fazem para incentivar o retorno do seu produto para a loja, pelo consumidor, é incentivar o comportamento do sujeito com descontos. Se você vai até a loja em que comprou o tal produto bem de modinha, uma vez que você se cansou dele e tal ou ele estragou, você pode devolvê-lo na loja em que comprou, e recebe um desconto (normalmente de até 30%) para gastar comprando outro produto. Essa abordagem é muito controversa. A pessoa deve ter seu comportamento estimulado por dinheiro? Quando a dimensão de pessoa se reduz para de mero consumidor, no sistema capitalista, sim, é exatamente isso que vai acontecer: é por dinheiro, pela oportunidade de consumir mais, que o sujeito se mexe. E se o comportamento é dentro de uma abordagem de crise climática, catástrofes ambientais, de salvacionismo do planeta, seria adequado o consumidor ser incentivado a consumir mais e mais? Será que ele não deveria reduzir o consumo? A loja não poderia (ou não deveria) incentivá-lo a consumir mais, e sim estimulá-lo a consumir menos, com mais consciência. Mas como isso é possível, em um sistema de moda sazonal e para uma empresa que objetiva lucrar cada vez mais (e qual empresa não quer lucrar cada vez mais?)? Será que a empresa deveria fazer produtos que não fossem tããão de modinha, e que tivessem uma qualidade um pouquinho melhor?
Ora, isso tudo não é um dilema para o marketing da Melissa. Os caras tiveram uma ideia “genial” de anunciar para as revistas e sites de moda que hoje, em 15 de outubro de 2019, Dia do Consumo Consciente, todas as lojas terão um comunicado escrito “Pause”, e não vão vender nada.
Vamos ler isso mais profundamente:
- Por um dia. Apenas por um dia, nas lojas físicas. Nos demais 364 dias, tudo normal. Nos 365 dias, online, tudo normal, vendas acontecendo.
- Ao anunciar aos quatro ventos que vai fazer tal “ação diferente”, “nossa, que arrojada”, “marketing corajoso”, “uhuull”, o que a marca consegue é chamar atenção para ela. Criou uma notícia super diferente, e fez render a publicidade, a mídia espontânea. Apareceu para o público e com uma mensagem positiva e descolada. Alacazam. Tem que dar os parabéns mesmo para o marketing, assessoria de imprensa, todo mundo da comunicação da empresa.
- A Melissa faz um verdadeiro desserviço para educar a população sobre sustentabilidade, inserindo-se no discurso ambiental com uma ação pontual, mas não de forma perene. A Melissa não é uma ecobrand. Ela é uma empresa tradicional, que faz um calçado de modinha, e de qualidade duvidosa.
- A Melissa fez apenas uma “ação de sustentabilidade”, isto é, houve um dia que ela resolveu não vender nas lojas físicas. Mas “pode ser” que nesse dia em que ela não vendeu, mas comunicou pra todo mundo que não ia vender, e todo mundo prestou atenção nisso, a marca acabou ganhando tanto em exposição para as massas alienadas consumidoras de moda que, depois disso, passou a vender até um pouco a mais para consumidores que se identificaram com a “postura ambiental e arrojada” da empresa.
A empresa comunicou também que espera que os consumidores descartem para a loja Melissa as melissinhas que estão paradas no armário. Ela espera que o consumidor seja o responsável por parte da logística reversa. E, finalmente, ela promete fazer um calçado 100% reciclado (eu ainda acho que essa informação foi divulgada errada, pois um calçado de polímero 100% reciclado iria perder muuuuito nas suas propriedades mecânicas, tornando-se inferior ao padrão atual. Pelo menos, essa é a teoria. Ele teria que ter algum aditivo para reforçar… mas aí se tornaria um composto? Um novo tipo de polímero? Um novo lixo tecnológico? Eu ficaria feliz de receber uma informação mais precisa e científica, e menos comercial).
DUARTE, Luciana dos Santos. Estudo comparativo do impacto ambiental do jeans CO/PET convencional e de jeans reciclado. Dissertação de mestrado em Engenharia de Produção, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2013, 101 p.
As minhas dúvidas são:
- Para os engenheiros da empresa: como vai ser a qualidade desse calçado 100% reciclado? Como é o processo produtivo de tornar o calçado 100% reciclado equivalente ou melhor que o atual padrão de qualidade dos calçados da empresa?
- Para o marketing da empresa: “how dare you?” Como diria nossa amiga ambientalista Greta Thunberg, “como vocês se atrevem”? Por que vocês não transformam esse flerte barato com o discurso ambiental em um compromisso sério e explícito para consumidores entendidos sobre o paradigma ambiental? Por que não educam as pessoas ao invés de tentar tirar vantagem pontual do seu comportamento e da sua dimensão de sujeito reduzida a mero consumidor de modinha? Não se trata sobre ter um site que agrega diversos elementos do discurso sustentável. Enquanto for um produto de polímero, de qualidade duvidosa, e pautado na modinha, fica difícil da marca se posicionar como ecobrand, ainda que a empresa em si consiga ser sustentável (redução de impacto ambiental em processos produtivos, igualdade de gênero, etc.). Parece que brincam com a inteligência das pessoas.
Uma coisa é a empresa ser sustentável. Outra coisa é o produto NÃO SER, mas PARECER sustentável por causa das qualidades da empresa, bem como da comunicação e do posicionamento do mesmo.
O produto em si não se sustenta em pé.
Saiba mais:
- Sustentabilidade no Minas Trend, com uma crítica aos calçados veganos
- Trabalho infantil no calçado em Franca
- Glamour: Melissa esvazia suas lojas no Dia do Consumo Consciente
- Nylon: Get Jelly: what we want from Melissa’s exciting fall/winter collection